sábado, 11 de abril de 2009

O OUTRO

O fato ocorreu no mês de fevereiro de 1969, ao norte de Boston, em Cambridge. Não o escrevi imediatamente, porque meu primeiro propósito foi esquecê-lo para não perder a razão. Agora, em 1972, penso que, se o escrevo, os outros o lerão como um conto e, com os anos, ele o será talvez para mim.

Sei que foi quase atroz enquanto durou e mais ainda durante as desveladas noites que o seguiram. Isso não significa que seu relato possa comover um terceiro.

Seriam dez da manhã. Eu estava recostado em um banco, defronte ao rio Charles. A uns quinhentos metros a minha direita havia um alto edifício cujo nome nunca soube. A água cinzenta carregava grandes pedaços de gelo. Inevitavelmente, o rio fez com que eu pensasse no tempo. A milenar imagem de Heráclito. Eu havia dormido bem; minha aula da tarde anterior havia conseguido, creio, interessar os alunos. Não havia vivalma.

Tive, de repente, a impressão (que, segundo os psicólogos, corresponde aos estados de fadiga) de já ter vivenciado aquele momento. Na outra ponta de meu banco, alguém sentara. Eu teria preferido estar só, mas não quis levantar para não me mostrar descortês. O outro se havia posto a assobiar. Foi então que ocorreu a primeira das muitas inquietações dessa manhã. Aquilo que assobiava, aquilo que tentava assobiar (nunca fui muito entoado), era o estilo crioulo de La tapera, de Elías Regules. O estilo me conduziu a um pátio já desaparecido e à memória de Álvaro Mellián Lafinur, morto há muitos anos. Em seguida, vieram as palavras. Eram as da décima desde o princípio. A voz não era a de Álvaro, mas queria parecer-se com a de Álvaro. Reconheci-a com horror.

Aproximei-me e disse-lhe:

— O senhor é uruguaio ou argentino?

— Argentino, mas desde o ano de catorze vivo em Genebra — foi a resposta.

Houve um silêncio longo. Perguntei-lhe?

— No número dezessete da Malagnou, em frente à igreja russa?

Respondeu-me que sim.

— Nesse caso — disse-lhe resolutamente —, o senhor se chama Jorge Luis Borges. Eu também sou Jorge Luis Borges. Estamos em 1969, na cidade de Cambridge.

— Não — respondeu-me com minha própria voz um pouco distante.

Depois de um tempo, insistiu:

— Eu estou aqui em Genebra, em um banco, a alguns passos do Ródano. O estranho é que nos parecemos, mas o senhor é muito mais velho, com a cabeça grisalha.

Respondi:

— Posso te provar que não minto. Vou te dizer coisas que não pode saber um desconhecido. Em casa há uma cuia de prata com um pé de serpentes, que trouxe do Peru nosso bisavô. Há também uma bacia de prata, que pendia do arção. No armário de quarto há duas fileiras de livros. Os três volumes das Mil e uma noites de Lane, com gravuras em aço e notas em corpo menor entre os capítulos, o dicionário latino de Quicherat, a Germânia de Tácito em latim e na versão de Gordon, um Dom Quixote da editora Garnier, as Tablas de Sangre de Riviera Indarte, com a dedicatória do autor, o Sartor Resartus de Carlyle, uma biografia de Amiel e, escondido atrás dos demais, um livro em brochura sobre os costumes sexuais dos povos balcânicos. Não esqueci tampouco um entardecer em um primeiro andar da praça Dubourg.

— Dufour — corrigiu.

— Está bem. Dufour. Te basta tudo isso?

— Não — respondeu. — Essas provas não provam nada. Se eu o estou sonhando, é natural que o senhor saiba o que sei. Seu catálogo prolixo é totalmente vão.

A objeção é justa. Respondi:

— Se esta manhã e este encontro são sonhos, cada um de nós tem de pensar que o sonhador é ele. Talvez deixemos de sonhar, talvez não. Nossa evidente obrigação, enquanto isso, é aceitar o sonho, como aceitamos o universo e termos sido gerados e ver com os olhos e respirar.

— E se o sonho durasse? — disse com ansiedade.

Para tranqüilizá-lo e tranqüilizar-me, fingi uma serenidade que certamente eu não sentia. Disse-lhe:

— Meu sonho já durou setenta anos. Afinal de contas, ao rememorar, não há pessoa que não se encontre consigo mesma. É o que nos está acontecendo agora, só que somos dois. Não queres saber alguma coisa de meu passado, que é o futuro que te espera?

Assentiu sem uma palavra. Prossegui, um pouco perdido:

— A mãe está saudável e bem, em sua casa da Charcas com a Maipú, em Buenos Aires, mas o pai morreu há uns trinta anos. Morreu do coração. Uma hemiplegia o liquidou; a mão esquerda posta sobre a mão direita como a mão de uma criança sobre a mão de um gigante. Morreu com impaciência de morrer, mas sem uma queixa. Nossa avó havia morrido na mesma casa. Alguns dias antes do fim, chamou-nos a todos e disse: “Sou uma mulher muito velha que está morrendo muito devagar. Que ninguém se perturbe por uma coisa tão comum e corrente”. Norah, tua irmã, casou-se e tem dois filhos. A propósito, em casa como estão?

— Bem. O pai sempre com seus gracejos contra a fé. Ontem à noite disse que Jesus era como os gaúchos, que não querem comprometer-se, e que, por isso, pregava por meio de parábolas:

Vacilou e disse:

— E o senhor?

— Não sei o número de livros que escreverás, mas sei que são muitos. Escreverás poesias que te darão uma satisfação não partilhada e contos de índole fantástica. Darás aulas como teu pai e como tantos outros de teu sangue.

Agradou-me que nada perguntasse sobre o fracasso ou êxito dos livros. Mudei de tom e prossegui:

— No que se refere à História... Houve uma guerra, quase entre os mesmos antagonistas. A França não tardou a capitular; a Inglaterra e a América travaram contra um ditador alemão, que se chamava Hitler, a cíclica batalha de Waterloo. Buenos Aires, por volta de mil novecentos e quarenta e seis, engendrou outro Rosas, bastante parecido com nosso parente. Em cinqüenta e cinco, a província de Córdoba nos salvou, como antes Entre Rios. Agora, as coisas andam mal. A Rússia está se apoderando do planeta; a América, presa pela superstição da democracia, não se decide a ser um império. Cada dia que passa nosso país está mais provinciano. Mais provinciano e mais presunçoso, como se fechasse os olhos. Não me surpreenderia se o ensino do latim fosse substituído pelo do guarani.

Notei que mal me prestava atenção. O medo elementar do impossível, e no entanto certo, aterrorizava-o. Eu, que não fui pai, senti por esse pobre moço, mais íntimo que um filho de minha carne, uma onda de amor. Vi que apertava entre as mãos um livro. Perguntei-lhe qual era:

— Os possessos ou, segundo creio, Os demônios, de Fiodor Dostoievski — replicou-me não sem vaidade.

— Já o esqueci. Como é?

Nem bem o disse, senti que a pergunta era uma blasfêmia.

— O mestre russo — sentenciou — penetrou mais do que ninguém nos labirintos da alma eslava.

Essa tentativa retórica pareceu-me uma prova de que se havia acalmado.

Perguntei-lhe que outros volumes do mestre havia folheado.

Enumerou dois ou três, entre eles O sósia.

Perguntei-lhe se, ao lê-los, distinguia bem os personagens, como no caso de Joseph Conrad, e se pensava prosseguir o exame da obra completa.

— A verdade é que não — respondeu com certa surpresa.

Perguntei-lhe o que estava escrevendo e disse-me que preparava um livro de versos que se intitularia Los Himnos Rojos. Também havia pensado em Los Ritmos Rojos.

— Por que não? — disse-lhe. — Podes alegar bons antecedentes. O verso azul de Rubén Darío e a canção gris de Verlaine.

Sem me dar atenção, esclareceu que seu livro cantaria a fraternidade entre todos os homens. O poeta de nosso tempo não pode voltar as costas a sua época.

Fiquei pensando e perguntei-lhe se verdadeiramente se sentia irmão de todos. Por exemplo, de todos os empresários de pompas fúnebres, de todos os carteiros, de todos os mergulhadores, de todos os que vivem nas casas de números pares, de todos os afônicos, etcétera. Disse-me que seu livro se refere à grande massa dos oprimidos e dos parias.

— Tua massa de oprimidos e párias — respondi — é apenas uma abstração. Só os indivíduos existem, se é que existe alguém. “O homem de ontem não é o homem de hoje”, sentenciou algum grego. Nós dois, neste banco de Genebra ou Cambridge, somos talvez a prova.

Salvo nas severas páginas da História, os fatos memoráveis prescindem de frases memoráveis. Um homem a ponto de morrer quer se lembrar de uma gravura entrevista na infância; os soldados que estão prestes a entrar na batalha falam do bairro ou do sargento. Nossa situação era única e, francamente, não estávamos preparados. Falamos, fatalmente, das letras; temo não haver dito outras coisas que as que costumo dizer aos jornalistas. Meu alter ego acreditava na invenção ou descobrimento de metáforas novas; eu, nas que correspondem a afinidades íntimas e notórias e que nossa imaginação já aceitou. A velhice dos homens e o ocaso, os sonhos e a vida, o correr do tempo e da água. Expus-lhe essa opinião, que haveria de expor em um livro anos depois.

Quase não me escutava. De repente, disse:

— Se o senhor foi eu, como explicar que tenha esquecido seu encontro com um senhor de idade que, em 1918, disse-lhe que também era Borges?

Não havia pensado nessa dificuldade. Respondi, sem convicção:

— Talvez o fato tenha sido tão estranho que eu procurei esquecê-lo.

Aventurou uma tímida pergunta:

— Como anda sua memória?

Compreendi que, para um moço não havia completado vinte anos, um homem de mais de setenta era quase um morto. Respondi:

— Costuma parecer-se com o esquecimento, mais ainda encontra o que lhe pedem. Estou estudando anglo-saxão e não sou o último da classe.

Nossa conversa já havia durado demais para ser a de um sonho.

Uma súbita idéia me ocorreu.

— Eu posso te provar imediatamente — disse-lhe — que não estás sonhando comigo. Ouve bem este verso, que nunca leste, que eu me lembre.

Lentamente entoei a famosa linha:

— “L’hydre-univers tordant son corps écaillé d’astres”.

— É verdade — balbuciou. — Eu nunca poderei escrever uma linha como essa.

Hugo nos havia unido.

Antes, ele havia repetido com fervor, agora recordo, aquele breve fragmento em que Walt Whitman rememora uma compartilhada noite diante do mar em que realmente foi feliz.

— Se Whitman a cantou — observei — é porque a desejava e não aconteceu. O poema ganha se adivinharmos que é a manifestação de um anseio, não a história de um fato.

Ficou me olhando.

— O senhor não o conhece — exclamou. — Whitman é incapaz de mentir.

Meio século não passa em vão. Com nossa conversa sobre pessoas de leitura de miscelânea e gostos diversos, compreendi que não podíamos entender-nos. Éramos demasiado diferentes e demasiado parecidos. Não podíamos enganar-nos, o que torna difícil o diálogo. Cada um dos dois era o arremedo caricaturesco do outro. A situação era muito anormal para durar mais tempo. Aconselhar ou discutir era inútil, porque seu inevitável destina era ser o que sou.

De repente, lembrei uma fantasia de Coleridge. Alguém sonha que atravessa o paraíso e lhe dão como prova uma flor. Ao despertar, ali está a flor.

Ocorreu-me artifício semelhante.

— Ouve-me — disse-lhe —, tens algum dinheiro?

— Sim — replicou-me. — Tenho uns vinte francos. Esta noite convidei Simon Jichlinski para jantar no Crocodile.

— Diz a Simon que exercerá medicina em Carouge e que fará muito bem... Agora, me dá uma de tuas moedas.

Tirou três escudos de prata e algumas moedas menores. Sem compreender, ofereceu-me um dos primeiros.

Eu lhe estendi uma dessas imprudentes notas americanas que têm valor muito diferente e o mesmo tamanho. Examinou-a com avidez.

— Não pode ser — gritou. — Traz a data de mil novecentos e sessenta e quatro.

(Meses depois, alguém me disse que as notas de banco não têm data.)

— Tudo isso é um milagre — conseguiu dizer — e o milagroso dá medo. Aqueles que foram testemunhas da ressurreição de Lázaro terão ficado horrorizados.

Não mudamos nada, pensei. Sempre as referências livrescas.

Fez a nota em pedaços e guardou a moeda.

Eu resolvi lançá-la ao rio. O arco do escudo de prata perdendo-se no rio de prata teria conferido a minha história uma imagem vívida, mas a sorte não quis assim.

Respondi que o sobrenatural, se ocorre duas vezes, deixa de ser aterrador. Propus a ele que nos víssemos no dia seguinte, neste mesmo banco que está em dois tempos e dois lugares.

Assentiu logo e me disse, sem olhar o relógio, que já era tarde. Os dois mentíamos e cada qual sabia que seu interlocutor estava mentindo. Disse-lhe que viriam buscar-me.

— Buscá-lo? — interrogou.

— Sim. Quando chegares a minha idade, terás perdido quase por completo a visão. Verás a cor amarela e sombras e luzes. Não te preocupes. A cegueira gradual não é uma coisa trágica. É como um lento entardecer de verão.

Despedimo-nos sem nos termos tocado. No dia seguinte, não fui. O outro tampouco terá ido.

Meditei muito sobre esse encontro, que não contei a ninguém. Creio ter descoberto a chave. O encontro foi real, mas o outro conversou comigo em um sonho e foi assim que pôde esquecer-me; eu conversei com ele na vigília e ainda me atormenta a lembrança.

O outro me sonhou, mas não me sonhou rigorosamente. Sonhou, agora o entendo, a impossível data no dólar.

(BORGES, Jorge Luis. O outro. In: O livro de areia. Obras completas: volume III. Tradução por: Lígia Morrone Averbuck. Rio de Janeiro: Globo. 1999).



...

Arte Poética

Tradução de Rolando Roque da Silva
(Poesia Filosofica)



Mirar o rio, que é de tempo e água,


E recordar que o tempo é outro rio,

Saber que nos perdemos como o rio

E que passam os rostos como a água.



E sentir que a vigília é outro sonho

Que sonha não sonhar, sentir que a morte,

Que a nossa carne teme, é essa morte

De cada noite, que se chama sonho.



E ver no dia ou ver no ano um símbolo

Desses dias do homem, de seus anos,

E converter o ultraje desses anos

Em uma música, um rumor e um símbolo.



E ver na morte o sonho, e ver no ocaso

Um triste ouro, e assim é a poesia,

Que é imortal e pobre. A poesia

Retorna como a aurora e o ocaso.



Às vezes, pelas tardes, uma face

Nos observa do fundo de um espelho;

A arte deve ser como esse espelho

Que nos revela nossa própria face.



Contam que Ulisses, farto de prodígios,

Chorou de amor ao avistar sua Ítaca

Humilde e verde. A arte é essa Ítaca

De um eterno verdor, não de prodígios.



Também é como o rio interminável

Que passa e fica e que é cristal de um mesmo

Heráclito inconstante que é o mesmo

E é outro, como o rio interminável.