
Longe da fama e das espadas,
Alheio às turbas ele dorme.
Em torno há claustros ou arcadas?
Só a noite enorme.
Porque para ele, já virado
Para o lado onde está só Deus,
São mais que Sombra, e que Passado
A terra e os céus.
Quem ele foi sabe-o a Sorte,
Sabe-o o Mistério e a sua lei.
A vida fê-lo herói, e a Morte
O sagrou Rei!
No oculto para o nosso olhar,
No visível à nossa alma,
Inda sorri com o antigo ar
De força calma.
E amanhã, quando queira a Sorte,
Quando findar a expiação,
Ressurrecto da falsa morte,
Ele já não.
Mas a ânsia nossa que encarnara,
A alma de nós de que foi braço,
Tornará, nova forma clara,
Ao tempo e ao espaço.
Ah, tenhamos mais fé que a esp’rança!
Mais vivo que nós somos, fita
Do Abismo onde não há mudança
A terra aflita.
E se assim é; se, desde o Assombro
Aonde a Morte as vidas leva,
Vê, esta pátria, escombro a escombro,
Cair na treva;
Se algum poder do que tivera
Sua alma, que não vemos, tem,
De longe ou perto — porque espera?
Porque não vem?
Em nova forma ou novo alento,
Que alheio pulso ou alma tome,
Regresse como um pensamento,
Alma de um nome.
Regresse sem que a gente o veja,
Regresse só que a gente o sinta —
Impulso, luz, visão que reja,
E a alma pressinta!
Que nova luz virá raiar
Da noite em que jazemos vis?
Ó sombra amada, vem tornar
A ânsia feliz.
Quem quer que sejas, lá no abismo
Onde a morte a vida conduz,
Sê para nós um misticismo
A vaga luz
Com que a noite erma inda vazia
No frio alvor da antemanhã
Sente, da espr’anca que há no dia,
Que não é vã.
E amanhã, quando houver a Hora,
Sendo Deus pago, Deus dirá
Nova palavra redentora
Ao mal que há,
E um novo verbo ocidental
Encarnado em heroísmo e glória,
Traga por seu broquel real
Tua memória!
Fonte: Fragmentos do Poema
“A Memória do Presidente-Rei Sidônio Pais”
Ação, nº 4, 1920.
Fernando Pessoa - Poemas Ocultistas- 27/02/1920
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